Nos últimos anos, muitas mulheres resolveram insurgir contra o patriarcado sem segurar armas que não fossem suas palavras e experiências. Começaram a contar, para o mundo, todas as coisas que viveram, e ainda vivem, apenas por serem o que são.
O feminismo, movimento que surgiu muito antes de você nascer (lá pelo século XIX, para ser mais exata), tomou novas formas e cores nos últimos dez anos, quando as mulheres entenderam que, juntas, poderiam derrubar uma série de obstáculos impostos pelos homens. Cada uma das mulheres que você conhece, hoje, podem te contar sobre o dia ou o acontecimento em que perceberam que eram feministas.
E, tenho pra mim, até aquelas que se dizem não ser feministas – ou ser contra o feminismo – já são feministas, mesmo sem saber.
Talvez estejam confusas, achando que o feminismo é a arte de odiar os homens ou de tirar deles o que eles conquistaram.
Mas uma coisa que aprendemos é que, cedo ou tarde, todas as mulheres (e, com sorte, muitos homens) descobrem que o feminismo é uma luta por equidade, por direitos que não dependam do gênero para serem concedidos e pelo reconhecimento de que, biologicamente, não há nenhuma diferença de capacidade entre um homem e uma mulher.
Portanto, além de o feminismo levantar bandeiras como o direito feminino de decidir sobre seu corpo, sobre seu estilo de ser e se vestir sem opressão, sobre sua participação política e sobre como elas enxergam as investidas masculinas em diversos pontos de um (ensaio de) relacionamento, o feminismo também fala sobre salários iguais, condições de trabalho iguais, reconhecimento pelo mérito igual.
Afinal, se não existe nenhuma comprovação científica de que o cérebro dos homens é mais dotado de capacidades do que o das mulheres, é uma questão puramente lógica querer que ambos sejam tratados de maneira igual em todas as instâncias de sua existência, inclusive no mercado de trabalho.
É por isso que, aqui na Profissas, já escrevemos sobre o machismo no ambiente profissional e, também, sobre os desafios femininos ao escolher uma carreira. E, enquanto o mundo não mudar nesses dois cenários, entre tantos outros mais, continuaremos falando sobre isso.
Meu momento feminino
Esse ano escrevi um artigo contando 31 coisas sobre meus 31 anos e, ao fazer o levantamento das características que me eram mais importantes para contar nessa lista, me deparei com uma memória de infância.
Eu tinha uns 12 anos e me vesti para ir no cinema com as amigas em uma cidade do interior, em um tempo em que ainda era relativamente seguro às crianças andarem sozinhas pelas ruas. Vesti saia, botinha e fiz duas tranças no cabelo, passei em frente a um bar apinhado de homens e ouvi um elogio sobre minhas pernas.
Eu sempre tive pernas grossas, e uma bunda igualmente gigantesca, e recentemente ouvi uma inglesa dizer que adorava meu corpo porque eu tinha “proporções exatas em lugares que muitas pessoas pagariam muito dinheiro para ter”. Agradeci essa conclusão, sabendo que ela falava justamente do meu atributo ítalo-brasileiro, mas contei a ela exatamente o que estou prestes a te contar agora, quase que em tom de pedido de desculpas.
Ao passar na frente daquele bar, provavelmente pensando no filme que estava por ver ou qual boneca eu ainda gostaria de ganhar (sou criança até hoje, mas parei oficialmente com as bonecas por volta dos 14 anos), e receber um “elogio” causado pelo tamanho da minha saia, fui tolhida por anos e anos e anos de botar as pernocas de fora e sorrir para o mundo.
No fundo, mesmo aos 12 anos, eu sabia que as palavras – que hoje nem me lembro quais foram – não eram um elogio, e sim uma ameaça. Algo como: você é um pedaço de carne, desejável em qualquer idade e disponível para qualquer homem.
A última coisa que me lembro desse dia foi ter caminhado até o cinema com muito medo e passado minha adolescência inteira – e o começo da minha vida adulta – fazendo o possível para masculinizar o meu look.
Eu vestia calça jeans sempre, tênis sempre, blusa larga sempre. De vez em quando me recordo da minha mãe e avó me sugerindo um vestidinho tão bonitinho, mas eu batia o pé e dizia que não.
Aos 15 anos, pedia emprestado o moletom dos meninos se eu tivesse que sair depois da aula para algum lugar, porque o uniforme tendia a ser um pouco mais justo.
(Aliás, valeu, Everton, por me emprestar por semanas a fio a sua blusa cinza da MDC. Ajudou bastante!)
Mas, voltando ao dia do cinema, acredito que esse tenha sido meu momento mulher, o momento em que enxerguei que as coisas eram realmente diferentes para mim. Não foram as bonecas, não foi o cor de rosa, não foram as instruções de cruzar as pernas quando eu estava de saia. Pra mim isso tudo ainda era muito natural. Foi a ida ao cinema que mudou minha percepção sobre meu próprio gênero.
Meu momento feminista
Alguns anos depois, em 2013, ganhei da minha amiga Cláudia um livro escrito pela Sheryl Sandberg que se chamava “Faça Acontecer”. Até então, sabia que ela tinha um alto cargo no Facebook e já tinha trabalhado em outras startups, mas sua biografia se resumia a isso para mim. Depois de comer com angu esse livro em três dias, Sheryl virou uma espécie de mentora. “Faça Acontecer” virou minha bíblia.
Eu achava que era feminista e, com esse livro, que culminou em uma carta aberta à autora (respondida por mensagem de Facebook e um pedido de amizade na rede social), eu tive plena certeza.
Estava pronta para não arredar mais pé da luta pelos direitos femininos e estudar a fundo suas vertentes e consequências. Vi que não existe só um tipo de feminismo e que temos que lutar, verdadeiramente, por todas as mulheres, principalmente porque existem níveis de igualdade ainda inalcançáveis dentro do nosso próprio grupo.
Eu, como feminista branca, por exemplo, não posso me esquecer que as irmãs negras ainda passam muitas dificuldades mais – e preciso, com elas, levantar minha voz, ou me calar para que ecoem as delas, para que todas as bases estejam cobertas na luta por um mundo melhor.
Em 2013 percebi que tinha vivido, de vez, o meu momento feminista. E ele vai durar até o fim dos meus dias.
“Vai, Malandra!” – E nós estamos indo
Às vezes, tenho algumas surpresas que para outras pessoas podem parecer idiotas, mas que, para mim, são a salvação do mundo. Vou dar um exemplo: você deve ter visto, no ano passado, que a Anita lançou um clipe da sua música “Vai, Malandra”.
Depois de o clipe dominar a internet, vi muitas meninas e mulheres comentando: “se até a Anita pode mostrar as celulites, quem sou eu para não poder?”
Essa percepção mexeu comigo de forma intensa. Primeiro, porque, independentemente de você gostar ou não da música, falamos sobre uma artista incrível se mostrando com seu melhor atributo: ser mulher. E mulher tem celulite mesmo, lide com isso!
Se outro dia a Anita estava levando um pito da Pitty (com o perdão do trocadilho) em rede nacional, ela absorveu o ensinamento e o transformou em transgressão poética. Acredite: as celulites da Anita libertaram, finalmente, muitas manas.
Inclusive eu, que, no fim do ano passado, consegui superar, de vez, o fatídico dia da ida ao cinema. Se eu já tinha me condicionado a voltar a usar vestidos, shorts e bermudas e mostrar as pernocas para o mundo, em dezembro saí de uma loja de departamentos com um short que mostra uma belíssima parte da minha bunda grande – e, hoje, o uso com mais naturalidade e menos medo.
O medo ainda existe, mas só para mostrar que a luta não acabou. Que ainda tem mais. Mas, nesse carnaval, vi a mulherada indo para a rua com a bunda de fora, os peitos de fora e a alma de fora e enxerguei ali mais do que uma expressão corporal: uma declaração política.
Um grito de “o corpo é meu e você só coloca a mão nele se eu quiser”.
Como eu disse, ainda tem muito chão pela frente: o Brasil é um dos países que mais estupra e mata mulheres no mundo. Mas me alegrou ver que o discurso de poder feminino já está sendo plantado nos corações – e vaginas –, e a minha esperança é de que, muito em breve, esses crimes estejam riscados da nossa necessidade de luta.
Pra não dizer que não falei de flores
Hoje, ao passear pelas suas redes sociais, você vai notar muitas manifestações pelo Dia da Mulher. Normal: 8 de março é a data que marca acontecimentos importantes sobre o direito feminino nos Estados Unidos, como a marcha pelo voto em 1908, o incêndio em uma fábrica de Nova York em 25 de março de 1911, que matou centenas de mulheres, e o Congresso das Mulheres Socialistas da Dinamarca, em 1910.
Como podemos ver, a história desse dia não se resume a agradecer às mulheres por serem tão prestativas, amáveis, belas, recatadas e do lar, como fomos condicionados a entender por anos, mas sim a exaltar a força política e social das mulheres ao longo dos anos, que garantiram a todas nós diversos direitos e benefícios.
A vida seria linda e você poderia até achar que uma florzinha no dia 8 de março é só um jeito de não deixar a data passar em branco se a sociedade não estivesse tão focada em regredir no que já foi conquistado.
Se as pessoas não batessem palmas para músicas que fazem alusão ao estupro. Se Hollywood não estivesse lotado de artistas encabeçando uma luta contra o assédio e a desigualdade salarial no entretenimento. Se o Congresso não estivesse de prontidão para tirar das mulheres o direito do aborto em caso de estupro ou de fetos com má-formação que colocam em risco a vida da mãe. Isso, claro, além de tentar definir o aborto não como um caso de saúde pública, e sim como um problema moral e religioso.
Se meninas ao redor do mundo não estivessem sendo empaladas, se não lutassem pela vida depois de estupros coletivos, se não tivessem sua vida sexual exposta para o país todo por homens que precisam só fazer trabalho voluntário para se livrar desse crime, enquanto elas ficam estigmatizadas pela vida toda, nesse caso, talvez, dar uma florzinha e uma caixinha de bombons à mulher mais importante da sua vida, no dia 8 de março, não fosse um grande problema.
Mas, Vandré que me desculpe, mesmo caminhando e cantando e seguindo a canção, ainda não somos todos iguais – e é por isso que o feminismo existe e resiste. E vai continuar existindo e resistindo, independente do que pensem aqueles que são contrários à ideia.
Você já deve ter ouvido alguém te falar que “em uma mulher não se bate nem com uma rosa”. Lembre-se que, mediante a tantas lutas, tantos pedidos e tantas aflições do mundo feminino que existem só pelo fato de sermos mulheres, uma rosa pode acabar virando a maior violência que poderíamos sofrer no dia de hoje.
Por isso, nesse oito de março, não dê flores. Dê respeito. Dê conscientização. Dê sua contribuição nessa luta com gestos que podem ser “pequenos”, mas que fazem toda a diferença: não tratar a vida sexual de uma mulher com grosseria, não julgar sua personalidade por suas roupas, não cortar suas frases ao meio, porque você certamente tem uma explicação melhor para o que ela está falando.
Entender, definitivamente, que, depois do não, tudo é assédio. E se a mulher não está em condições de saber disso, a investida a ela não te faz menos criminoso.
Aliás, se você ainda não recebeu o memorando, tratar o feminismo como “mimimi de feminazi”, comparando o movimento ao nazismo, não só é dispensável como, também, pode te fazer passar uma vergonhazinha básica por mostrar que, na real, você não entendeu nada sobre nenhuma das duas coisas…
Às mulheres que persistem na luta e às que ainda estão por nos seguir, fica meu desejo de alma feminista: tenham todas um ótimo dia oito de março de 2018. Que ele marque o início de novas lutas, novas etapas e novas conquistas, que virão aos montes se permanecermos unidas.