A arte está de muitas formas presente nas nossas vidas. Seja numa música que ouvimos, num filme, numa exposição que visitamos ou até mesmo numa fotografia que clicamos com os nossos telefones. Porém, muitas vezes a gente nem se dá conta que ela está lá, ou ainda, coloca a arte num papel apartado de nós. O artista é tido como alguém mágico, transcendente, especial.
A minha relação com a arte também foi assim durante muito tempo. Sempre frequentei exposições e museus, shows, gosto muito da linguagem da fotografia, mas sempre olhei para a arte como um item de consumo que me conectava com o belo.
De uns tempos para cá, algo se modificou nessa relação. Foi com a linguagem das acrobacias aéreas: o circo. Há alguns anos eu comecei a praticar tecido acrobático e me apaixonei pela modalidade. Como diria Satish Kumar, quando um escultor dá forma a um pedaço de pedra, o pedaço de pedra dá forma ao escultor. Com o passar da experiência, o circo foi me moldando. Foi uma jornada: primeiro ganhei músculos, e com o corpo forte, fortaleci também o espírito: ganhei autoconfiança, presença e segurança.
Porém, em um instante decisivo – parafraseando Cartier Bresson que se refere ao instante decisivo como o momento de capturar uma foto – o circo me transformou em artista. Sou capaz de descrever o que senti naquele instante. Eu estava no palco em uma apresentação e algo me tocou forte dentro do peito. Pela primeira vez me coloquei de uma maneira porosa no palco. Me conectei com o público. Abri mão do receio, da timidez e pensei que todos os ensaios haviam sido suficientes para a perfeição do número. Escolhi me abrir para viver a experiência em sua totalidade. A experiência do palco – que é um dos lugares mais desafiadores para se estar – me atravessou como uma onda invisível que toca e modifica a alma.
Ao deixar fluir, me transformei. A arte virou rotina e a transformação também. Escolhi me deixar moldar em toda a interação com a arte. Acho que isso me faz sentir mais viva: afinal, como diria Goethe, temos sempre que mudar, nos renovar, rejuvenescer, senão a gente endurece.
Um florescer
Se fizermos um paralelo com as plantas, primeiro surgem as raízes, para ter estrutura – o caule, em seguida dar origem as folhas e quando a planta dá o seu máximo, ela floresce. Esse germinar se assemelha ao meu processo: desde cedo os estímulos da mente racional foram maiores, em detrimento do corpo. Fui fortalecer o corpo, para ter estrutura – um caule. Fui praticando, fazendo diversas descobertas, tendo folhas, mudando a cada estação. E a cada estação que passava, entendi que a criação não é fruto apenas desse nosso cérebro racional, ela acontece como uma dança combinando as faculdades da imaginação, da intuição e de estar conectado e ouvindo o corpo a todo instante. Ou seja, de estar integralmente presente na experiência.
O poder transformador das artes
Nos últimos 500 anos a arte se tornou objeto de consumo, uma mercadoria. Antigamente, nas sociedades tradicionais não havia uma separação. Nos desconectamos da arte, criamos uma cisão. Dessa cisão, nós saímos perdendo. Primeiro do afastamento de vivenciar a riqueza da arte. E depois de conectá-la com a nossa expressão no mundo. Explico com dados: os cientistas que possuem algum hobby artístico potencializam suas chances de ganhar um prêmio Nobel – e para as artes cênicas, é 22 vezes maior a chance[..1] . Para mim a relação é simples: as artes aproximam as pessoas das suas faculdades mais subjetivas: a criatividade, a imaginação, a intuição, enfim o sutil. Quando o sutil se une ao racional, muitas respostas aparecem.
A arte também nos dá a resposta para esse vazio que às vezes sentimos: ela nos ajuda na nossa autorrealização, criando senso de pertencimento. Tagore – poeta indiano, artista e prêmio Nobel de Literatura, que inspirou as palavras do Satish Kumar falava do “poder transformador da poesia e as artes. Ele foi além da arte pela arte, ou da arte como expressão do eu, e até mesmo da arte como entretenimento. Incentivava a ideia da arte para o despertar do eu e para a transformação da consciência, para a iluminação da alma e, mais do que tudo, para mudar o mundo.” – (In: Solo Alma e Sociedade p. 103)
Deixa a arte te transformar
Minha intenção ao escrever esse texto é dizer que a arte pode ser para qualquer um, independente de formação, estrutura corporal ou qualquer outro elemento às vezes visto como empecilho. Como diria A. K. Coomaraswamy “um artista não é um tipo especial de pessoa, mas cada pessoa é um tipo especial de artista.” Dentro de cada um de nós existe um artista. É só preciso ir se expondo às artes que te chamam. As opções são infinitas. Pode ser a cozinha: é uma arte deixar o fluxo dos alimentos conduzir o preparo de uma refeição. Pode com a música, tocando um instrumento e/ou cantando, pode ser artes plásticas como o desenho ou a escultura, artes manuais como a marcenaria, a arte da escrita – poesia, romance, contos, mitos, com as artes cênicas, ou enfim com o que for te chamando.
E na sua vida prática, vou te dar três razões para experimentar:
- Ampliar sua criatividade: você passa a explorar mais o lado esquerdo do cérebro que é menos estimulado na nossa sociedade moderna.
- Desenvolve sua presença: dedicar-se verdadeiramente a uma atividade artística necessita uma dedicação por inteiro, reforçando o senso de presença e com isso desfrutar dos benefícios da atenção plena que comentei nesse texto.
- Ao entrar em contato com as artes, você utiliza seu corpo. Integrá-lo como método de conhecimento – aprender a aprender com o corpo – é muito poderoso, pois é nele que estão as nossas emoções e tantos outras fontes de conhecimento sobre nós mesmos.
Por fim, deixo o meu encorajamento do lugar de alguém que já passou – e sigo passando – pela experiência e sigo carregando um sorriso de quem escolheu aceitar esse fluir. E como diria Einstein, a mais bela experiência que podemos ter é a do mistério. Ela é a emoção fundamental que está na origem da verdadeira arte e da verdadeira ciência.
[1] Dados do livro Originais – Como os Inconformistas mudam o mundo – Adam Grant